Notícias

San­ta ­Cruz de la Sier­ra/Bolívia

Domingo, 01 de fevereiro de 2009 - 13h03min

Medo ronda produtores brasileiros na Bolívia

Em pra­ti­ca­men­te to­dos os ca­nais de te­le­vi­são da Bo­lí­via o as­sun­to era o mes­mo às 16 ho­ras do úl­ti­mo do­min­go, dia em que os bo­li­via­nos fo­ram às ur­nas pa­ra di­zer sim à no­va Cons­ti­tui­ção pro­pos­ta pe­lo pre­si­den­te Evo Mo­ra­les. Em tom de de­nún­cia, re­pór­te­res mos­tra­vam ca­sos de elei­to­res que já ti­nham vo­ta­do, mas não es­ta­vam com os de­dos man­cha­dos de ­azul. Por lá, mer­gu­lha-se a mão em tin­ta de­pois de vo­tar. Os bor­rões são as maio­res ga­ran­tias – frá­geis e ar­cai­cas – de que não há frau­de no re­sul­ta­do fi­nal do plei­to, ou se­ja, de que um ci­da­dão vo­tou ape­nas uma vez.

O ca­so da tin­ta co­mo com­pro­van­te de vo­to é o re­tra­to da fra­gi­li­da­de e da in­se­gu­ran­ça po­lí­ti­ca que ron­da o ­país. A Bo­lí­via es­tá di­vi­di­da en­tre par­ti­dá­rios e opo­si­to­res do pre­si­den­te, que se con­cen­tram em ­duas re­giões geo­grá­fi­cas: o Al­ti­pla­no, que com­preen­de La Paz e ­mais ­três de­par­ta­men­tos (es­ta­dos) e abri­ga a maio­ria da si­tua­ção; e a ­Meia Lua, on­de es­tão cin­co de­par­ta­men­tos, in­cluin­do San­ta ­Cruz, re­du­to de opo­si­to­res e de bra­si­lei­ros.

De acor­do com Cláu­dio Be­zer­ra, vi­ce-côn­sul do Bra­sil em San­ta ­Cruz de la Sier­ra, ca­pi­tal de San­ta ­Cruz, há se­te mil bra­si­lei­ros vi­ven­do no de­par­ta­men­to. A maio­ria são es­tu­dan­tes uni­ver­si­tá­rios, atraí­dos por cur­sos con­cor­ri­dos, co­mo o de Me­di­ci­na, que cus­ta ape­nas 180 dó­la­res por mês nas fa­cul­da­des bo­li­via­nas. O res­tan­te da co­lô­nia bra­si­lei­ra é com­pos­ta por co­mer­cian­tes e agri­cul­to­res.


À bei­ra de uma guer­ra ci­vil

No en­tan­to, é do cam­po que vem os prin­ci­pais si­nais de preo­cu­pa­ção. Na dé­ca­da de 1990, cen­te­nas de bra­si­lei­ros cru­za­ram a fron­tei­ra pa­ra mu­dar a his­tó­ria do agro­ne­gó­cio bo­li­via­no. Atraí­dos por ter­ras ba­ra­tas e com von­ta­de de em­preen­der, le­va­ram tec­no­lo­gia e ex­pe­riên­cia ao ­país vi­zi­nho. En­con­tra­ram, no Nor­te de San­ta ­Cruz, uma ter­ra ain­da ­mais pro­du­ti­va do que a ver­me­lha do Nor­te do Pa­ra­ná, ca­paz de pro­por­cio­nar ­duas sa­fras de so­ja por ano sem pre­ci­sar de um gra­ma de fer­ti­li­zan­te.

‘‘Quan­do os bra­si­lei­ros co­me­ça­ram a che­gar por ­aqui, ha­via 170 mil hec­ta­res de so­ja sen­do cul­ti­va­dos. Ho­je, a ­área plan­ta­da pas­sa de um mi­lhão de ­hectares’’, co­men­ta Nil­son Me­di­na, que tro­cou Lon­dri­na por San­ta ­Cruz de la Sier­ra há 17 ­anos.

Tu­do ia de ven­to em po­pa. A ca­da ano, as sa­fras ­eram pro­mis­so­ras e as téc­ni­cas de plan­tio ­mais apu­ra­das. Os bra­si­lei­ros di­ver­si­fi­ca­ram os ne­gó­cios e as la­vou­ras, pas­san­do a in­ves­tir tam­bém em ou­tras cul­tu­ras e em ga­do. Con­tri­buí­ram pa­ra o as­fal­ta­men­to de ro­do­vias e pa­ra o vo­lu­me de di­nhei­ro cir­cu­lan­do na ci­da­de. De re­pen­te, com os ­ideais de Mo­ra­les, que co­me­çou seu go­ver­no em 2006, as coi­sas mu­da­ram. Ho­je, nu­vens ne­gras de preo­cu­pa­ção ron­dam os pro­du­to­res bra­si­lei­ros.

Em 2007, Mo­ra­les che­gou a sus­pen­der as ex­por­ta­ções bo­li­via­nas de al­guns ­itens da ces­ta bá­si­ca. En­tre os pro­du­tos, ­óleo de so­ja e de gi­ras­sol – cul­tu­ra usa­da em San­ta ­Cruz pa­ra a sa­fri­nha da so­ja. Jus­to em um mo­men­to que era de al­ta des­ses pro­du­tos na Bol­sa de Chi­ca­go. Os pre­juí­zos fo­ram enor­mes. O mer­ca­do in­ter­no não deu con­ta de ab­sor­ver to­da a pro­du­ção. Tam­bém nes­se ano, o pre­si­den­te ex­pul­sou a Pe­tro­brás do ­país. 

O brasi­lei­ro ­João (no­me fic­tí­cio), que tem ­mais de ­seis mil hec­ta­res de ter­ra, to­pa con­ce­der en­tre­vis­ta, mas pre­fe­re não se iden­ti­fi­car. De­pois que an­dou ma­ni­fes­tan­do sua opi­nião a fa­vor do mo­vi­men­to de au­to­no­mia de San­ta ­Cruz, sen­te na pe­le as re­pre­sá­lias im­pos­tas na for­ma de di­fi­cul­da­des pa­ra a com­pra de com­bus­tí­veis.

Há um de­par­ta­men­to do go­ver­no bo­li­via­no in­ti­tu­la­do ‘‘Subs­tân­cias ­Controladas’’, que cui­da da co­ta men­sal de com­bus­tí­veis que po­de ser ven­di­da pa­ra ca­da pro­du­tor. Até há pou­co tem­po, es­se ser­vi­ço fun­cio­na­va no cen­tro de San­ta ­Cruz de la Sier­ra. Re­cen­te­men­te, o ór­gão foi trans­fe­ri­do pa­ra o Pla­no 3000, um bair­ro po­bre e re­du­to de Mo­ra­les na ci­da­de opo­si­cio­nis­ta.

‘‘Sem­pre que dou en­tra­da no trâ­mi­te de com­pra de com­bus­tí­vel, re­ce­bo o ca­rim­bo de ne­ga­do, sem jus­ti­fi­ca­ti­va. En­quan­to a maio­ria pa­ga US$ 0,53 por li­tro de die­sel, te­nho que pa­gar US$ 0,71. Com­pro na ba­se da cor­rup­ção pa­ra po­der pro­du­zir. O sis­te­ma pú­bli­co ­cria di­fi­cul­da­des pa­ra ven­der ­facilidades’’, la­men­ta.

Po­rém, ­João res­sal­ta que a ins­ta­bi­li­da­de po­lí­ti­ca é um fan­tas­ma que as­som­bra ­mais que a cor­rup­ção. Nin­guém sa­be ain­da co­mo se­rá in­ter­pre­ta­da a no­va Cons­ti­tui­ção Fe­de­ral, que pra­ti­ca­men­te di­vi­de o ­país em in­dí­ge­nas e não in­dí­ge­nas.

‘‘O pre­si­den­te não res­pei­ta as di­fe­ren­ças ét­ni­cas e geo­grá­fi­cas exis­ten­tes no ­país. Es­ta­mos à bei­ra de uma guer­ra ci­vil. A maio­ria dos bra­si­lei­ros é ca­paz de mor­rer por tu­do o que foi fei­to ­aqui. Mas te­mos me­do. Nes­te go­ver­no, não se po­de con­fiar em na­da. Não há se­gu­ran­ça ju­rí­di­ca. De uma ho­ra pa­ra ou­tra, po­dem bai­xar de­cre­tos ab­sur­dos. En­quan­to is­so, o Go­ver­no bra­si­lei­ro, que de­via nos de­fen­der, pas­sa a mão na ca­be­ça de Mo­ra­les.’’

A re­por­ta­gem da FO­LHA en­trou em con­ta­to com a Em­bai­xa­da da Bo­lí­via no Bra­sil e com o de­par­ta­men­to de co­mu­ni­ca­ção do go­ver­no Bo­li­via­no, em La Paz. No pri­mei­ro ór­gão, a in­for­ma­ção é de que o côn­sul, Ál­va­ro ­Araóz Si­les, só es­ta­rá dis­po­ní­vel pa­ra en­tre­vis­tas a par­tir de ama­nhã, se­gun­da-fei­ra . Em La Paz, os te­le­fo­ne­mas não fo­ram aten­di­dos.


Tamanho das propriedades preocupa

‘‘Te­mos me­do de di­vul­gar is­so nes­te mo­men­to, mas dos 700 mil hec­ta­res de so­ja que são plan­ta­dos a ca­da sa­fra, 200 mil são de bra­si­lei­ros. A co­mu­ni­da­de bra­si­lei­ra é mui­to im­por­tan­te den­tro da pro­du­ção de so­ja do Es­ta­do de San­ta ­Cruz, ­pois se des­ta­ca pe­la tec­no­lo­gia e pe­la ex­ce­len­te téc­ni­ca de ­produção’’, diz, re­ceo­so, o bo­li­via­no Jai­me Her­nán­dez Za­mo­ra, ge­ren­te de pla­ni­fi­ca­ção e ges­tão da As­so­cia­ção Na­cio­nal de Pro­du­to­res de Olea­gi­no­sas e Tri­go (Ana­po). Ele jus­ti­fi­ca o te­mor ex­pli­can­do que há uma ten­dên­cia na­cio­na­lis­ta por par­te do go­ver­no. Nes­se con­tex­to, as pro­prie­da­des de bra­si­lei­ros não es­ta­riam com­ple­ta­men­te se­gu­ras.

  Se­gun­do Za­mo­ra, o pla­no de uso de so­lo bo­li­via­no é de 1995 e pre­ci­sa ser re­vis­to. Ele diz que a le­gis­la­ção vi­gen­te dei­xa mui­tas bre­chas pa­ra que o go­ver­no to­me ter­ras de qual­quer pro­du­tor. ‘‘O ­mais gra­ve é a ques­tão tra­ba­lhis­ta. Pos­so ci­tar um exem­plo: se o do­no da pro­prie­da­de for pa­dri­nho de ba­tis­mo do fi­lho de um em­pre­ga­do, ele po­de ser acu­sa­do de es­tar abu­san­do afe­ti­va­men­te do em­pre­ga­do e is­so po­de re­sul­tar em con­fis­co de ­suas ­terras’’.

  ­Além dis­so, ­mais do que vo­ta­rem pe­lo sim ou pe­lo não no re­fe­ren­do de do­min­go pas­sa­do, os bo­li­via­nos tam­bém res­pon­de­ram so­bre o vo­lu­me má­xi­mo de ter­ras que uma pes­soa po­de ter no ­país: cin­co mil ou 10 mil hec­ta­res. Dos qua­tro mi­lhões de elei­to­res do ­país, 72% vo­ta­ram pe­los cin­co mil hec­ta­res. A maio­ria dos bra­si­lei­ros têm ­mais ter­ra do que is­so. ­Mais um mo­ti­vo pa­ra preo­cu­pa­ção, mes­mo com Evo Mo­ra­les ga­ran­tin­do que a de­ci­são do re­fe­ren­do não se­rá re­troa­ti­va.

  Na no­va Cons­ti­tui­ção Fe­de­ral, apro­va­da por 60% dos elei­to­res, um ar­ti­go diz que a ter­ra de­ve ter uma ‘‘fun­ção ­social’’. Os opo­si­to­res de Evo Mo­ra­les di­zem que o ter­mo é va­go de­mais e que po­de ser in­ter­pre­ta­do de for­ma equi­vo­ca­da.

  O pau­lis­ta de Pi­ra­ci­ca­ba ­Raul Ama­ral Cam­pos Fi­lho es­tá des­de 1997 na Bo­lí­via. Atual­men­te, plan­ta 10 mil hec­ta­res por sa­fra. Pa­ra ele, os agri­cul­to­res en­fren­tam um ‘‘ter­ro­ris­mo de ­incertezas’’ por con­ta da si­tua­ção po­lí­ti­ca. Ou­tra di­fi­cul­da­de é a fal­ta de com­bus­tí­veis, que co­me­çou a acon­te­cer de­pois que a Ya­ci­mien­tos, es­ta­tal bo­li­via­na, as­su­miu o lu­gar da Pe­tro­brás.

  ‘‘Por ­aqui, to­do mun­do tem me­do. To­dos es­ta­mos apreen­si­vos, mes­mo sa­ben­do que nos en­con­tra­mos em si­tua­ção le­gal e cum­prin­do a nos­sa fun­ção so­cial de pro­du­to­res. Po­rém, a úni­ca coi­sa que po­de­mos fa­zer é con­ti­nuar com o ­trabalho’’, la­men­ta o agri­cul­tor, que tam­bém faz par­te da Fun­da­cruz, uma fun­da­ção que de­sen­vol­ve a tec­no­lo­gia de 60% das se­men­tes de so­ja plan­ta­das na Bo­lí­via. 


Um pé-vermelho otimista

Ele nasceu em Santo André (SP), mas viveu boa parte de sua vida em Londrina, por isso se considera um pé-vermelho de coração. O engenheiro agrônomo Nilson Medina tinha um emprego estável em uma multinacional de defensivos agrícolas, quando decidiu pedir as contas, deixar o Norte do Paraná e ir se aventurar em terras bolivianas, em 1992.

Com espírito empreendedor, a intenção era se tornar vendedor de agroquímicos no país vizinho. Também nutria o sonho de, um dia, comprar um pedaço de terra. Hoje, Medina é dono de 17 mil hectares na Bolívia e se considera um empresário da agroindústria. Diversificou os negócios. Além da soja - que ainda é o carro-chefe - tem gado, cana, trigo.

Já naturalizado boliviano, é vice-presidente da Câmara de Comércio Brasil-Bolívia e um dos diretores da Anapo. Não deixa de se pronunciar sobre as questões políticas do país e se mostra otimista em relação ao futuro da política de terras na Bolívia.

Sou otimista. Acredito que logo haverá uma estabilização. Eu não sou do partido do presidente, mas concordo com ele que os pobres têm que melhorar de vida. Confesso que tenho medo de que, devido ao forte conteúdo ideológico da nova Constituição, possa acontecer uma anarquia, mas, por outro lado, estamos sob os olhos da comunidade internacional. O que nós queremos e devemos fazer é continuar contribuindo com tecnologia e construindo acordos entre Brasil e Bolívia para que esse país continue se desenvolvendo, afirma.

Wi­lhan San­tin

Fonte: Folha de Londrina

+ Notícias
+ Notícias